segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Queria que não fosse um texto triste















Carla Cardoso

Há certas coisas que realmente são intraduzíveis em palavras, diz o poeta Ferreira Gullar. O nó na garganta, o frio na barriga, a cratera dentro do peito... Nada disso tenho como explicar, como transcrever em palavras. Só sei que estão aqui, latentes, há um ano, dentro de mim. Quem trabalhou no Jornal Monitor Campista talvez compreenda esse embargo, essas lágrimas que teimam cair dos meus olhos. Compreendem, mas também não conseguem explicá-los.
Há exatamente um ano, a última edição do Monitor foi vendida nas bancas. Revolta, tristeza, surpresa... um misto de emoções nos abalou. Foi difícil acreditar que, apesar de nossos esforços, tudo poderia se acabar ali. Eu não faria mais o trajeto diário da rodoviária à Rua João Pessoa, 202/204, e chegaria até a redação do Jornal cheia de papéis de propagandas, que sempre me entregavam nas ruas.
Eu não mais atenderia Adão, o alegre lavador de carros que quase todas as tardes ia filar, comigo, um cafezinho e um dedinho de prosa... Quantas vezes, com páginas para editar, eu deixava tudo, e ia atendê-lo... e ele retornava na semana seguinte, com o mesmo sorriso tímido e falhado, pois ali, como eu, ele se sentia acolhido, embora fosse invisível pela sociedade em diversos outros espaços.
O moço do “milho-papa-e-pamonha” não mais marcaria ponto lá, nem mesmo a dona das balinhas de coco e açúcar. Eu não leria mais os e-mails e bate-papos de Mariane ou Pati, ou acompanharia as infinitas discussões sobre os mistérios Divinos, com Enockes e Elton, nem falaria sobre Mia Couto e Agualusa com Mirian, no espaço externo, tomando café... Quanta coisa boa vivemos naquele prédio, naquele lar, naquela família.
Durante esses 365 dias, por muitas vezes fiz o trajeto Centro – Mercado Municipal, para ir a São João da Barra, onde trabalho como assessora na Secretaria Municipal de Comunicação. Passar pela João Pessoa, e, portanto, em frente ao prédio 202/204, é quase obrigatório. Nesse período, acompanhei a morte da plantinha do escritório que ficou abandonada na parte superior do prédio; vi quando o local foi colocado à venda, quando tiraram o letreiro com o nome do Jornal e quando colocaram tapumes para início de uma obra. Vi também o movimento dos operários que entravam e saíam de trás daquelas madeiras, ouvi barulhos de máquinas e, a cada martelada, se ia um pedacinho de meu coração. Meu desejo era que eles parassem com tudo, mas ninguém me ouviu, ninguém me viu. Ninguém reparou que meu olhar não era de curiosidade para o que apareceria ali. Mas um olhar de desespero porque eles estavam quebrando o meu lar.
E nesse meu ir e vir, um dia, a obra cessou. Os tapumes saíram de lá e a casa antiga de dois andares deu lugar a um ambiente aparentemente mais moderno, com uma nova porta de correr e sem o espaço externo onde tomávamos café. Quando vi pela primeira vez a bela loja de calçados naquele recinto, não foi a sandália de salto alto pink que anuncia a tendência do verão que me chamou a atenção. Foi o chão, que eu acho que ainda é o mesmo, ou é bem parecido. Pelo menos eu tive essa impressão, até atravessar a rua sem coragem para continuar ali, observando aquelas carinhas alegres por terem um novo emprego, atendendo clientes, e a mulherada parando o trânsito em frente àquela vitrine tão colorida.
Mas aquelas paredes – essas sim, ainda são as mesmas, com certeza – foram testemunhas de tempos tão bons e nos trazem a energia de momentos únicos. Ao passar por lá sinto um brisa diferente e me lembro do que também diz Gullar: “vento no rosto é sonho”. O que vai acontecer, eu não sei, mas o que passamos ali algo que vamos trazer para sempre, algo que ninguém poderá tirar de nós.

(Claudinha, Dani, Jô, eu e Alice. Pausa para uma foto na redação)

2 comentários:

Daniel Damasceno disse...

Emocionante o texto. Uma pena que um patrimônio da cidade acabe dessa forma, tão silenciosamente, sem que metade da população sequer entenda o motivo. O que dizem as autoridades?

Cláudia Eleonora disse...

Amiga, também não queria fazer um comentário triste. Mas, o nó na garganta é inevitável. A dor de um jornalista leitor é tão grande quanto a do jornalista escritor. Mais uma vez recorro a Mia Couto para traduzir o que sinto depois de um ano sem o Monitor: "morto amado nunca para de morrer". Este é o sentimento em saber que sonhos, histórias e vidas relatados na páginas produzidas com muita competência e dedicação foram interrompidos. Ainda é incompreensível para mim. Além da informação acrescentei à minha própria história, com muito carinho, pessoas especiais como você.
Beijos, Cláudia Eleonora