segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Aberto


João Ventura

– Oi, tudo bem? Posso ajudar? – perguntou a mocinha.
– Hã... não. É... tô só olhando – respondi.
A moça só tentava ser simpática, eficiente. Eu, estava em transe. Naquele momento, ela não sabia, mas havia jogado uma bóia em um mar de lembranças que vieram à tona no momento em que entrei naquele estabelecimento. Nunca imaginei que uma loja de calçados me faria ficar assim.
– Fique à vontade, qualquer coisa, é só me chamar – disse, com um sorriso que pensava na comissão.
– Bem, na verdade, entrei aqui não foi por causa dos sapatos... meus pés só entraram. Vieram sozinhos.
A moça riu. Riu mas não entendeu o que eu havia dito. Ainda ébrio pelas lembranças, as palavras saíram, explicando:
– Aqui, neste prédio, funcionava minha casa. – disse, com a memória pontiaguda ferindo meu crânio por dentro – você lembra de como era isso aqui antes da loja? – perguntei.
– Hummm, não. Parece que, quando abre uma coisa nova, não nos lembramos da antiga – respondeu. Pelo seu olhar, ela pensava em como uma casa poderia “funcionar”.
Sem dizer nada, apontei o meio da entrada da loja. A moça, ainda com o pensamento na comissão, acompanhou o olhar. “Ali, ficava um balcão, onde as meninas da recepção, recebiam dezenas de pessoas. Era gente querendo fazer anúncio, aparecer, mostrar música nova, quadro novo, denunciar. Mas tinha mesmo era muita gente carente, só querendo um ombro amigo que lhe ouvisse”, detalhei.
– Ó, vinha esse monte de gente na sua casa? – indagou a pobre.
– Sim, vinham. E eles encontravam ombros amigos.
Caminhei então um pouco mais adiante, para a direita e passei por uma porta imaginária ao lado de uma senhora que, com dificuldade, experimentava sandálias. Muita dificuldade. “Daqui”, apontei, “se via o coração da casa. Vários computadores, pessoas apressadas. Todos também moravam aqui, éramos um pouco irmãos”, relembrei. “Uma vez, ali onde está aquela menina com a bolsinha, secretários municipais entraram pela porta, colocaram pressão. Queriam que publicássemos decisões oficiais. Enfrentamos. Ali, naquela vitrine onde estão agora as botas, ficava o editor-chefe. Ele gritava pra botar ordem quando tudo ficava muito bagunçado. E, com as pessoas que viviam aqui, ele tinha que fazer isso sempre”.
– Editor? Era o que que tinha em sua casa?
– Minha casa era um jornal – respondi entristecido – Eu ficava bem aqui, onde agora essas pessoas experimentam sapatos. Quando a ponte caiu, fomos correndo. Quando explodiu, também. Quando os prefeitos entraram e saíram. Quando os artistas vinham. Quando alguém era preso... – fiz uma pausa – aqui funcionava o Monitor Campista.
A moça ouviu isso e abriu um sorriso tímido. “Eu lembro dele”, disse, adicionando que gostava do jornal. “Minha mãe adorava, o achava o mais bonito”, disse a vendedora. “O que aconteceu? Faliu?”.
– Não. Na verdade, não sei. Pra mim é tão surreal que não sei dizer. Ninguém soube – e continuei caminhando para o fundo da loja. Lá, no caixa, a visão da registradora se sobrepunha à uma outra. Vi mais uma porta imaginária e entrei por ela, acompanhado da vendedora – Aqui, ficava uma pequena cozinha, acho que era o lugar que todos mais gostavam. As coisas aconteciam. De tanto vir, acabei me casando. Acho que a cerimônia começou aqui.
– A cerimônia começou aqui? Você casou dentro do jornal?
– Praticamente. Era como uma família aqui. Acabou se tornando minha família de verdade. Estranho né? Estranho e bom.
– É sim! Você se deu bem. E os outros, fazem o que da vida?
– Seguiram em frente, ainda tristes. Até tentamos voltar com tudo, mas era muita gente indiferente. Na verdade, quase ninguém se importa com isso, pois quase ninguém entrou aqui como você entrou hoje – disse à vendedora.
Nesse instante, outra funcionária interrompeu a conversa, pedindo ajuda à menina. Ela fez um sinal e se despediu, tinha saído da conversa diferente, ao invés de indiferente.
– Obrigada. Você me fez lembrar de um lugar bom, que eu não tinha conhecido antes. Mas, agora tenho que ir. Sei lá, acho que vou ficar meio triste trabalhando aqui agora, sabendo que é só mais uma loja de sapatos – disse, de cabeça baixa.
– Infelizmente, não vai. Vai passar, esse sentimento bom só fica pra alguns poucos. Só quem viveu, de verdade – disse a ela.
A vendedora deu as costas. Tratou-se de ocupar com suas tarefas. Depois de conversar com ela, senti que, assim como eu havia feito naquela manhã, as lembranças das pessoas que passaram por aquele prédio, número 202/204 da João Pessoa, mantinham, de alguma forma, o jornal aberto, ainda que só na imaginação.
Antes de sair, viro-me para uma última olhada e as portas se fecham às minhas costas. As letras na faixa azul estão lá, se despedindo. Fecham-se as cortinas, fim do espetáculo. Alguém interrompe:
– Oi. Posso ajudá-lo?
– Não, não. Estou só olhando. Só olhando...

(Na foto, do início da carreira, dou os "primeiros passos" no lugar que hoje abriga uma sapataria)

6 comentários:

Danielle Brandão disse...

Loja de sapatos?? Loja de sapatos?? Ainda bem que continuo a evitar passar por alí. A dor dor será maior ainda ao ver isso... =o(

João Ventura disse...

Agora, loja de calçados. Antes, pedra no sapato. Acho que foi por isso que fechou...

Mas que é triste é!

juarez forever disse...

loja de sapatos... campos, né?! ¬¬

Elton_Designer disse...

Vamos comprar sapatos e jogar na cara de quem fechou o Monitor.

Jô Siqueira disse...

João Ventura!!!!!!!!!

Depois de ler seu comentário, só me resta reafirmar, o que já sabia. Você é muito talentoso. Sucesso!!!!

Abraços

Jô Siqueira

João Ventura disse...

Valeu Jô, aprendi com os melhores!